Mistérios do indizível
Valmir Luis Saldanha,
Você que me lê que me ajude a nascer.
Clarice Lispector
Antes de qualquer escrita era sempre a mesma coisa, ela sorria para o sol
pintado num quadro em seu quarto. O astro-rei sempre a lhe iluminar a face.
A quinta grandeza que esperava atingir assim, do “nada”, num estalo; como
uma entidade mítica ele estava ali e a encarava sorridente e benevolente com
a condição humana, com a ambição humana. Ela ambicionava, mas sua ambição
era, antes, outra coisa: queria chegar ao que alguém já chamara de "it" das
coisas. Mas não era bom dar nomes – não – nem mesmo "it" lhe parecia um bom
nome; havia nisso a intenção de se chegar ao indizível, ao indizível... ao
que só se chega dizendo de tudo, experimentando e deglutindo as
palavras,esvaziando-as do sentido aparente e carregando-as do “pluri”, do “multi”,
do “bi”, do “di”, do caminhar lento e suave do girassol: a vida: o sol.
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Não conseguia se concentrar; aquilo era um suplício para ela. Escrever
estava se tornando cada vez mais penoso, o que antes vinha fácil como se
debruçar na areia e sentir a água do mar, agora exigia força sobre-humana,
descomunal.
Na verdade, seu maior problema era escalar os confins da alma (de sua
própria alma), os confins da vida (o que era a vida?). Perguntas. Tudo lhe
parecia de uma dificuldade assustadoramente elevada. Ah, o eterno pensar!
Pois não seria isso? Estava pensando demais, analisando demais: a
mecanicidade. Era isso. Só podia ser isso, não havia outra explicação
plausível (não, não havia).
Gostava de escrever, queria, mas não assim! Ela gostava da liberdade, de
deixar o pensamento voar livre por sobre as cabeças (as cabeças que pensam
demais...). E agora isso!, essa coisa maquinal, sem fibra, essa coisa...
Sempre soubera o que escrever, antes era ela própria a escrita. Nunca fora
de sentir medo e isto agora começava a mostrar um eu diferente do que ela
conhecera, um "ela" – na verdade – que desafiava a olhar para dentro e
analisar as coisas todas, o motivo das coisas todas, o porquê das coisas
todas, o silêncio das coisas todas. Levaria uma vida toda? Era à tarde...
bem tarde, tarde.
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Havia algum tempo que não se ouvia o barulho da máquina de escrever. As
únicas coisas que pareciam fazer barulho naquela casa eram os pensamentos e
as angústias e as desilusões, tudo o que ela havia escondido durante todos
estes anos (e como lhe doía aquilo). Sua dor, áspera, não lhe cabia no
peito. O vazio que sentia era imenso... Não sabia o que era nem por
que era, o que ela sabia não se consegue colocar em palavras: o
indecifrável. A vida passava através de sua memória: seus erros, acertos:
tudo! Era demais (a inutilidade da vida?)... era demais (a covardia na
morte?)... conviver com ela mesma (e como lhe doía tudo aquilo). A alma, a
entrega, as flores sobre a mesa, o jantar à luz de velas (para dois); sua
dor, áspera, não lhe coube no peito e saiu... o grito surdo, abafado,
destituído. Não soube, nunca saberia: o indecifrável.
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Voltara! Não parecia muito decidida a isso. Entretanto, sabia que há coisas
que não se explica e não se entende: faz-se, vive-se,
elucida-se, morre-se e não pode haver explicação nem entendimento. Pensava
no “isso” e no “nada disso”: buscar o ínterim.
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Pusera os pés para fora depois de muito tempo. Qual a surpresa! Nada mudara:
nada do que interessa muda. De fora, sua casa aparentava ser menos
aconchegante do que realmente o era. Roçava as flores (murchas) de seu
jardim; o tempo passara também para elas: nada do que interessa fica.
Pousara um olhar, sereno e silencioso, sobre os escombros. Interrogava-se.
Contemplara ainda por um tempo aquela paisagem; ficaria ali se quisesse,
ficaria ali a sustentar-se (ao jardim), ficaria ali imóvel, calada, como que
a provar que não fora nada – as lágrimas –, que havia passado (como passam
as chuvas nos poemas ruins), que ela era forte (como fortes são os que
aguentam a cruz), ficaria ali se quisesse, imóvel, estupefata, patética,
calada. ________
(Nunca morrer assim, numa noite assim! Quando é a palavra que se cala, não
se morre; quando é a palavra que se cala, quem fala é o coração. E aqui
dentro, o silêncio... nós dois: a entrega, a conversa (abafada, destituída):
o indecifrável.)
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A máquina... Tecl, teclas. Passeara. Ninfas e dragões, máquinas, gentios,
homens e mulheres, traições e amores e ódios. O caminho: travessia. Agora, a
tristeza de um quarto minguante. As palavras, rareadas, mínguam... o
astro-rei ao quarto; dentro dela, escasseadas, as palavras mínguam. O
sorriso dos que não sabem, o necessário não-saber: mínguam. As dores e os
amores e as inquietações, mínguam. Pousara e pausara a mão à máquina. Levara
uma vida toda. O eterno retorno: Lua: Nova.
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DIA 02 Ontem o dia foi
laminha. Pensei em você quase que o tempo todo. Na verdade, entre um que
tinha posto uma tampa de caneta no nariz aqui e outro que tinha engolido um
botão acolá, eu pensava em você. Também, não é fácil pensar em você o tempo
todo.
Pensei chegar a casa, tomar um banho e ver se saía comprar um vinho... é
muito estranho não te ver falando devagar e ficando toda vermelha depois de
uma tacinha... Dormi com meia taça.
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Acordei de sobressalto no meio da noite, seu nome da ponta da língua, engoli
de volta. ________
De manhã, uma ressaca daquelas. Olhei para o lado e vi que aquela meia taça
só podia ser “tamanho família”, tomar um banho é sempre uma decisão acertada
numa hora dessas. Não segurei o choro no banheiro, mas fingi que não era
nada, que era a água quente do chuveiro.
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Decidi ir te ver hoje, espero que não estranhe a descompostura – é que ando
meio atribulado. Não, agora não adianta mais, a decisão está tomada: vou te
ver hoje! Só tenho que me recordar do caminho...
Valmir Luis Saldanha, nasceu dia 29 de julho de 1987 no interior de São
Paulo, vivendo toda a sua infância em Itatinga /SP, hoje estuda Letras na
UNESP - Araraquara leciona há três anos Literatura e Redação em colégios da
região. Começou há pouco com a Literatura mas já foi bem avaliado em alguns
concursos literários.
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