A imprecisão precisa da conversa
Márcio Buriti
TRÊS DIAS, de manhã ao por do Sol, sentado na mureta do alpendre da casa da
tia, apontando lápis, escrevendo, lendo, convivendo com Luís Alves e Guiomar
em A Mão e a Luva, de Machado. Vez em quando, para, suspira, descansa as
vistas nas flores lilases da quaresmeira que dá sombra e perfuma o alpendre.
Daí deita o livro na mureta e sai ao portão para olhar a rua de terra sempre
quieta, sem vivalma. Dissera-lhe a tia: rua sem nada. A menos que o velhinho
das verduras passe empurrando a carrocinha, e os pássaros cheguem num vrup
por uma ou outra folha de verdura que ele descarta na rua. No mais, é o sino
da igrejinha, o rádio da vendinha de seu Nenzico, e só. É claro, dissera-lhe
mais a tia, há o rádio aqui de casa, que a Mariinha, minha companheira de
lida, liga nos horários de notícia. Fora disso, o que se ouve é cacarejo no
quintal, o papagaio Zeca falando coisas ao galo Tonico por ciúme da Dora, a
galinha com pintinhos amarelinhos. Também, finalizara a tia, eu e Mariinha
falamos as nossas coisas, mas somos rápidas na conversa. Enfim, meu
sobrinho, você pode ler, ler e escrever seus trens tranquilo. A não ser que
Santinha, a moça em fim de adolescência que mora na última casa da nossa
rua, passe aos seus olhos. Aí, sim, alguma coisa vai-lhe amolar, posto que
Santinha, se de Santa tenha um pingo, das flores é uma espécie.
Depois do almoço temperado ao fogão à lenha, ele retorna à mureta do
alpendre. Curva-se para ver a casa da moça em fim de adolescência através
dos vãos da ramada da quaresmeira; mas, qual. Não vislumbrando a casa,
senta-se na cadeira de embalo virando palito na boca, ouvindo a conversa da
tia e Mariinha lá dentro. É a primeira vez em que as ouve conversando, posto
que Mariinha estivesse em viagem. Embora ache imprecisa, pôe ouvido à
conversa:
— Esse trem, hein, Mariinha?
— Pois é. Mas a senhora viu a sem-vergonhice de ontem?
— Vi. Quês coisas!
— O que a senhora pensa? Partiu dela?
— Ah, dele também. Mas, digo-lhe uma coisa: esse trem está aqui desde que
meu marido pôs.
— É por aí. O homem veio?
— Qual? Aquele?
— Não, o outro. O que gosta de macarrão com sardinha...
— Veio nada. Mas vou-te contar: esse trem, mesmo enferrujado, vale um
dinheirinho. Ou não?
— Deve valer. Mas sabe por que partiu dela?
— Por quê?
— Ela é tão sem-vergonha que pegou a mão dele e pôs no seio, querendo que
ele lhe sentisse o coração...
— Ah, isso é. Mas, sabe? Penso que aquele outro homem seria o certo...
— Agora, qual homem vai dispensar de pôr a mão nos seios de uma mulher? Ah,
mas partiu dela mesmo. Eu, hem!
— Parece que estou vendo uma marca nesse trem, Mariinha. Esse trem é
estrangeiro e vale mesmo uma notinha. Por isso meu marido guardou esse trem
aqui na dispensa.
— Quem sabe se a senhora falar com seu Antõe...
— Seu Antõe Marceneiro falou em vir?
— Não, falou não. É pra ele ver se esse trem tem algum valor. Se não tiver
valor que presta, vai pra montoeira de trens na varanda.
— É mesmo. Mas sabe o que eu acho Mariinha? O homem do macarrão com sardinha
não vem é nada. Conversa fiada.
— É sim. Mas hoje vai ser bom. Hoje a gente fica sabendo quem é que não tem
vergonha naquela história... É hoje!
— É mesmo. De hoje não passa. Não é possível.
Algumas horas depois, ele acorda com a tia, que, de mãos molhadas,
acotovela-lhe no ombro. Ela o acorda para o chá com broa de milho, enquanto
ele acorda para a precisão da conversa imprecisa delas. Assim, aponta o
lápis, diz "já vou, tia" e rascunha uma crônica descritiva para o seu
jornal. Ao chegar da agência dos Correios de uma portinhola só, encontra as
duas desamarrando os aventais. Ainda pega o finzinho da conversa:
— Bem que eu via esse trem embrulhado e amarrado no fundo da dispensa com os
dizeres de "não mexa".
— Pois é, se o homem vier cadê sardinha?
— Quer saber de uma coisa, Mariinha? Esse trem não vale é nada. Deixa lá.
— Aonde?
— Ah, pra lá. Vê lá.
Poço da Ressaca. Ilha da Ema. Tocantis, janeiro de 2009.
Márcio Buriti é
Tecnólogo Ambiental e Escritor. Publicou “Pagando Pecados” e “Dito e
feito”, trabalhos em contos, “causos”, e costumes das regiões do
Triângulo Mineiro e Sul de Goiás. Foi vencedor de concursos literários
promovidos pela Academia de Letras do Brasil Central na categoria
contos. Nasceu no dia 10 de abril de 1956, em Mata Preta, Buriti Alegre
– GO. [
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