A Neidinha
Fábia Vitiello de Azevedo Cardoso
"O casamento vem do amor, assim como o vinagre vem do vinho". (Lorde Byron)
Ele era casado. Ela era casada. Não um com o outro, mas eram casados sim. Ele percebeu
que ela casada assim que ela entrou pela porta do bar, porque ele não pode deixar de
olhar para aquela aparição ruiva, e a aliança dela faiscava em sua mão esquerda. Deu
uma boa olhada nela, ela era linda. Ela viu que ele estava olhando e olhou também. Mas
ele abaixou a cabeça e voltou a ninar sua bebidinha, enquanto esperava o Paulão para
adiantar os pontos principais do contrato dos japoneses. Era para isso que ele estava ali,
não para ficar encarando aquela ruiva maravilhosa sentada no balcão, de saia cinza e
cabelos soltos. Quer dizer, ele não tinha um pingo de juízo? A Neidinha ainda estava
puta da vida com a história da moça do Departamento de Recursos Humanos da empresa, ele
achava que ela não ia perdoá-lo nunca. Foi necessária a intervenção da família
inteira, dos amigos do casal e do Padre Sebastião para a Neidinha perdoá-lo e ele já
estava ali, num piano bar de hotel, esperando o Paulão e pensando besteira com a ruiva?
Ah, francamente, homem de Deus, e a Neidinha? Ele tinha jurado para a Neidinha que ia
andar na linha. Os cabelos da ruiva eram vermelhos escuros, iam até os ombros e as pontas
faziam uma curvinha para cima. Devia ser maravilhoso enrolar os dedos naquele cabelo
macio. O que ele tinha dito para a Neidinha mesmo? Ah, ele tinha dito: "Neidinha,
pode voltar para casa e trazer o garoto, porque agora eu vou andar na linha". A ruiva
de vez em quando olhava para trás, assim, disfarçando. E pousava a mão no pescoço.
Não, mão no pescoço não! Ele já estava gelado. Ai meu Deus, ai meu Deus. E o Paulão
que não chegava nunca? Pô, o Paulão não sabia o trabalho que tinha dado convencer a
Neidinha que era só uma reunião de negócios? Que ela tinha tido um ataque, ameaçado
voltar para a casa da mãe? Que ela tinha dito que ele estava em observação e que ela
não garantia que não iria aparecer naquele piano bar, só para conferir se não era
bandalheira dele e do Paulão? Agora, imagina se a Neidinha aparece ali, justo naquela
hora, e pega a cara de tonto dele, sozinho, olhando para a ruiva do balcão? Sim, porque a
Neidinha não era fácil, ela ia pegar no ato o que estava acontecendo e ia armar o maior
escândalo. Pô, o Paulão era fogo, viu? O Paulão só o metia em roubada. A ruiva olhou
para trás e sorriu. Ai meu Deus, ai meu Deus. Ele girou a aliança com força e tentou
pensar em outra coisa. Pensa na defesa da Portuguesa. Pensa no contrato com os japoneses.
Pensa na bronca que o Padre Sebastião deu por causa da sua história com a mocinha dos
Recursos Humanos. Pensa que a ruiva também é casada, você vai estar destruindo não um,
mas dois lares. O marido da ruiva nem sabe, mas ele é seu devedor para o resto da vida.
Você não destruiu o casamento dele com essa ruiva encantadora porque não quis. A ruiva
está levantando. Ah? Aonde que ela pensa que vai? Para o banheiro, ela estava indo para o
banheiro. Que susto, por um segundo, ele havia pensado que ela viria até sua mesa. E não
era isso que ele queria de jeito nenhum. SE ela caminhasse sinuosamente até a mesa dele,
pusesse a mão no ombro dele e sorrisse, como um convite, ele teria que se levantar,
enlaçá-la pela cintura e dizer olhando dentro daqueles olhos castanhos enormes:
"Querida, eu sinto muito, você é uma moça muito linda, mas eu sou um homem casado
e sério. Se você não respeita os sagrados laços do matrimônio, eu os respeitarei por
nós dois". Depois ele iria passar a mão pelos cabelos dela de forma paternal com um
sorriso superior e dar o maior beijo na boca que ela já recebera na vida. Não! Meu Deus,
você ficou doido? Assim não dá, pensa na Neidinha, pensa na Neidinha. Olha lá, a ruiva
está voltando do banheiro, cadê o Paulão? Pô, o Paulão é fogo. O Paulão detesta a
Neidinha e a Neidinha detesta o Paulão, vai ver que ele fez de propósito. O Paulão deve
ter pensado: "Eu vou deixar esse tonto lá no piano bar sozinho me esperando, ele vai
se interessar por alguma ruiva lindona e vai passar a chata da Neidinha para trás".
Era isso, aquilo tudo era um plano do Paulão para desestabilizar o casamento feliz dele
com a Neidinha. Justo agora que ele e a Neidinha estavam acertados! O Paulão tinha uma
mente diabólica. Mas ele ia ver uma coisa. Ia ver com quem estava lidando. Ia sentir o
poder da força de vontade dele, ia ver que ele era um novo homem, recuperado para o bem.
A Neidinha ia ver só como ele era digno de confiança. A ruiva deu uma virada no corpo
para acender um cigarro. Precisava se torcer daquele jeito? Era provocação, só podia
ser. Ah, mas como ela era linda. A camisa branca que ela usava escorregava pelo seu corpo,
os botõezinhos enfileirados sobre o peito e as pulseirinhas douradas em torno dos seus
pulsos, davam vontade de chorar. Ela era mesmo muito linda, muito. E se ela fosse um
travesti? Isso mesmo, feminina daquele jeito? Linda, com uns peitos maravilhosos. Era
isso, provavelmente era um travesti. Até que podia ser!, só os travestis são tão
femininos hoje em dia. Ah, Deus, por favor, faça com que essa ruiva seja um travesti.
Travesti sem gogó, ficou doido? Ué, vai ver que ela disfarça! Sei, e com um pezinho
daquele tamanhinho, ela deve calçar trinta e quatro! Tá bom, tá bom, não é um
travesti, não é. O cabelo dela brilhava, os olhos dela eram enormes. Respira homem,
respira. O senhor é meu pastor e nada me faltará. E se eu fosse falar com ela? Ele me
faz deitar em verdes pastos. Isso, puxava um assunto assim, sem graça, descobria que ela
era uma porta de burra, tinha uma voz fininha e irritante e o encanto acabava. Não. Com a
sorte dele, ela devia ter uma voz aveludada, ser doutora em filosofia e quando começasse
a discorrer sobre a finitude humana, ele a ergueria do chão e possuiria no balcão de
frios. Caramba, onde que o Paulão tinha se enfiado? As mãos dela eram pequenas e
clarinhas e ela tinha sardas no colo. Não, não ia dar. Isso era tortura, isso era
impossível, a Neidinha ia cometer suicídio desta vez. Ele se levantou e deixou o
dinheiro do uísque em cima da mesa. O Paulão que fosse se danar. Ele ia embora antes que
alguma coisa pior acontecesse. A Neidinha matava, nunca mais que ele ia ver o filho, que
cresceria revoltado, odiando as ruivas em geral e pichando muros. E ele poderia até
perder o emprego, porque, é claro, o Paulão ia adorar espalhar nos corredores da
empresa, que ele dera para pegar mulher em bar. De perto a pele da ruiva era ainda mais
clara e fininha. Parecia macia de tocar. Ela deu uma olhada comprida para ele enquanto ele
caminhava no que parecia ser sua direção, mas na verdade era na direção da saída.
Quando ele se aproximou mais, ela abriu a boca, ele nunca soube se era para dizer algo ou
para sorrir, porque desviou o olhar. Passou pela ruiva no balcão e sentiu um cheirinho
doce, levinho, de flor. Saiu do piano bar sacudindo a cabeça. Seu avô tinha razão.
Feliz daquele que conhece o perfume do que perdeu.
Fábia Vitiello de Azevedo Cardoso é paulista de São Paulo, onde nasceu
no dia 16 de fevereiro de 1971. Tem um livro publicado, "Crônicas de quase
amor", pela editora Iglu.
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