Diário de Bugrinha
(Excertos)
Manoel de Barros
1925
22.1
O nome de um passarinho que vive no cisco é joãoninguém. Ele parece com Bernardo.
23.2
Lagartixas têm odor verde.
2.3
Formiga é um ser tão pequeno que não agüenta nem neblina. Bernardo me ensinou: Para
infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei
fácil.
23.2
Quem ama exerce Deus a mãe disse. Uma açucena me ama. Uma açucena exerce Deus?
2.3
Eu queria crescer pra passarinho...
5.3
A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô! o livro está de
cabeça pra baixo. Estou deslendo.
5.6
O frio se encolheu nos passarinhos. Ó noite congelada de jacintos! Eu estou transida de
pétalas.
7.8
O pai trouxe do campo um filhote de urubu. Ele é branco e já fede.
12.8
As garças descem nos brejos que nem brisas. Todas as manhãs.
10.9
Um sapo feneceu 3 borboletas de uma vez atrás de casa. Ele fazia uma estultícia?
13.9
A mãe bateu no Mano Preto. Falou que eu não apanhava porque não dei motivo. Subi no
pico do telhado para dar motivo. Aqui de cima do telhado a lua prateava. A mãe disse que
aquilo não era motivo.
19.9
Uma égua iniciava meu irmão. O pai ralhou com ele. Meu irmão foi entrando para inseto
até desaparecer. Ficou dentro do mato até amanhã.
1.1
O Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas querem o corpo dele
para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro na sua cabeça.
2.2
A mãe disse que Bernardo é bocó. Uma pessoa sem pensa.
5.2
Sem chuvas, já reparei, as andorinhas perdem o poder de voar livres.
29.2
Hoje o Lara morreu picado de cobra. Fizeram seu caixão de costaneiras. Meu avô encostou
no caixão. Ué, eu que morri e quem está no caixão é o Lara! Meu avô enxergava mal.
2.1.1926
Catre-Velho é um ser confortável para moscas. Ele nem espanta algumas.
12.1
Choveu de noite até encostar em mim. O rio deve estar mais gordo. Escutei um perfume de
sol nas águas.
1.3
As árvores me começam.
1.4
Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde.
10.4
Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu acompanho...
21.4
Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz.
22.4
Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silêncio estica os lírios.
Extraído do "Livro Sobre Nada" (Arte de Infantilizar Formigas), Editora Record
- Rio de Janeiro, 1996, pág. 29.
Saiba mais sobre o autor e sua obra visitando "Biografias".
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