O pai
Helena Parente Cunha
Aquele cansaço de existir, aquela gosma impregnando os ossos, os músculos, os tecidos, o
sangue estagnado sob a pele desbotada, nem mesmo um gesto a se estender no ar, ela parada
na porta, nem indo nem vindo, só ali, não se mexendo, há quanto tempo a última
alegria? o último sorriso? cansaço, esforço inútil de respirar, gosma grudando o ar e
a parca luz do quarto fechado, cada um na sua bolha fofa e fria, frágil fio por partir
num sopro.
O pai parado na porta entre o quarto e agora. Por que você chegou tarde? Onde já se viu
moça de família na rua a estas horas? Você sabe que horas são? Há anos são dez horas
da noite, nunca mais amanheceu. Quem é aquele vagabundo que estava com você na saída da
escola? A manhã inteira esfregando a saia de flanela azul pregueada no banco, o quadrado
da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, no universo nada se perde, tudo se
transforma. Tudo se transforma em quê? Quem é aquele sacana que estava com você na
saída da escola? A escola, sempre a escola. Professora ou aluna, sempre a escola. Diante
da turma, que vontade de mandar todos os alunos para aquele lugar, que horror, de que
adianta ensinar o teorema de Pitágoras? as meninas esfregando nos bancos as calças blue
jeans, o que é cateto? já pensou, o quadrado do cacete?
O pai parado na porta, entre o triângulo e a buzina do carro. Quem é aquele desgraçado
que lhe deu carona? São dez horas da noite no universo inteiro e tudo se transforma em
triângulos exatos. Quem é aquele... Pelo amor de Deus, pai, eu tenho quarenta anos, até
quando você vai pedir satisfações de minha vida? Desculpe, pai, papaizinho, eu rasguei
meu vestido brincando no quintal, desculpe.
O pai parado na porta, entre a boneca e a tarde. Quem é aquele menino que estava correndo
na rua atrás de você? Você não sabe que é feio menina brincar com menino? E o muro?
Você não sabe que menina não sobe em muro? Desculpe, papai, eu só queria ver o que
havia do outro lado. Do outro lado do muro havia o havia. As meninas se encontravam com os
meninos atrás do muro. Mas papai, eu quero tanto ir ao aniversário de Teresinha, não
tem nada demais, eu já estudei, já fiz todos os deveres, estou cansada. Cansaço
gosmento na cabeça, nos olhos inchados.
O pai parado na porta, entre o barulho dos ônibus e o tapa. Quem é aquele rapaz que
estava conversando com você na esquina? Não tem nada de quinze anos nem nada, sua mãe
nunca conversou comigo sozinha antes do casamento. Mas papai, a gente não mora na roça.
O pai parado na porta, entre o caixão que saía e o retrato da mãe vestida de noiva, o
retrato pendurado na parede. De agora em diante, minha filha, você tem que tomar conta de
seu pai, fazer companhia a ele, seja uma boa filha. Namorar? Quem é aquele miserável que
quer desgraçar a sua vida? Você não tem pena de seu pai? Você sabe que horas são?
Onde já se viu escola terminar a esta hora? Que reunião que nada. A escola, sempre a
escola. Os ângulos de um triângulo somam 180°. Por quê? Nunca, mas nunca mesmo poderá
mudar? Esta soma será eternamente mesma num universo onde nada se perde e tudo se
transforma? Nada se perde, nem os dias nem os anos nem as horas, nada se perde, mas tudo
se transforma num monturo de lembranças rançosas de tudo que não pôde ser no baile de
formatura. Professora, sim, senhora, parabéns. A parentada toda despejou-se do interior,
aqueles parentes tabaréus, as mulheres com o rosto todo caiado de pó de arroz, os homens
com as cabeças engorduradas de brilhantina, todos atarantados junto dela, que vergonha,
as tias e as primas enfiadas nos vestidos de tafetá chamalotado, cheios de franzidos, sem
saberem se seguravam as bolsas ou os chapéus de palha enfeitados de flores as mais
indefectíveis, ah que vergonha, os ternos desajeitados de casimira listrada dos tios e
dos primos amarrados às gravatas de cores desgovernadas, sim senhora, parabéns,
professora, a primeira aluna de toda a faculdade, vejam só, ela estudou na faculdade,
pena que a mãe não esteja mais na terra pra ver, coitada.
Em todo o correr dos anos, tudo se transforma. Pitágoras, não, nem se perde nem se
transforma, irredutível na sua exatidão geométrica, os alunos se transformam, os alunos
esfregando os bancos, as calças cáqui de brim, os blue jeans, você é menino ou
menina?
O pai paradíssimo na porta, entre um ano e outro ano. Quem é aquele veado que estava com
você no ponto de ônibus? Ah! é uma amiga, este mundo está perdido e você ainda
reclama porque eu me preocupo com você. Hoje nós vamos ao cinema juntos. Hoje nós vamos
ao aniversário de sua tia. Por que você quer sair sozinha? Filha ingrata, eu faço tudo
para lhe distrair e você fica aí toda emburrada. Domingo que vem nós vamos passar o dia
em Itaparica na casa de seu padrinho (mas papai) você não quer ir por quê? Você tem
que espairecer.
O pai parado na porta, entre um anúncio e um comprimido. Ainda bem que você chegou cedo,
vamos ver a novela das oito na televisão. É boa esta novela, eu gosto muito de novela,
você precisa ver novela, distrai muito. Sim papai, de agora em diante, eu vou ver todas
as novelas, a das seis a das sete a das oito a das dez, tem das onze? Não, é bom que
não tenha porque a gente dorme cedo, você tem que acordar cedo para ir à aula. Por que
você quer fazer curso de pós-graduação? Pra quê? Bobagem, minha filha, você já
estudou muito, trabalha muito, já não é criança, de noite precisa descansar. Sim, o
cansaço, tanto cansaço, torpor guardando os membros e os pés no chão, não quero sair
não, papai, vamos ver televisão.
O pai parado na porta, entre a bengala e o catarro. Quem é aquele velho sem-vergonha que
saiu com você da escola? Será possível que você não sabe o que os outros vão pensar?
Mas papai.
O pai parado na porta, atravessado entre a hora de sair e a hora de nunca mais. Papai?
Cansaço. Cansaço de existir. Ela parada na porta, entre ficar e não sair, o corpo
colado numa gosma nem fria nem quente, um amarrado nos ossos, um grude se enfiando pelos
poros, alguém tocou a campainha? Ninguém entra ninguém sai, o teorema de Pitágoras
demonstrando para sempre até as mais densas profundezas do cansaço essencial. O quadrado
do sim é igual à soma dos quadrados de todos os nãos incendiados na medula. Cansaço de
viver e não viver. Nada se perde nada se ganha. O universo inteiro transformado num
atoleiro bolorento de esquecimentos do que nunca aconteceu em nenhum dia, em nenhuma hora,
atrás do muro da escola, onde houve um menino e uma menina.
Helena Parente Cunha (1930), nasceu em Salvador (BA). Poeta, ficcionista,
tradutora, professora universitária, pesquisadora, ensaísta e crítica literária,
reside desde 1958 no Rio de Janeiro (RJ). Em 1954, com bolsa de estudos da CAPES,
especializou-se em Língua, Literatura e Cultura Italiana em Perúgia, na Itália.
Trabalha, desde 1968, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Estreou, em 1960, com o livro de poemas Corpo do gozo, premiado no Concurso de
Poesia da Secretaria de Educação e Cultura da Guanabara, em 1965.
Outros livros da escritora:
Jeremias, a palavra poética, em 1979,
Maramar, em 1980,
Os provisórios, em 1980,
O lírico e o trágico em Leopardi, em 1980,
A mulher no espelho, em 1985,
As doze cores do vermelho, em 1998,
A casa e as casas, em 1996,
Cem mentiras de verdade, em 1985,
O outro lado do dia, em 1995,
Mulheres inventadas - I, em 1996,
Mulheres inventadas - II, de 1997,
Vento ventania vendaval, em 1997.
Obras traduzidas no exterior:
A mulher no espelho (alemão e inglês)
A casa e as casas (alemão).
Texto publicado no livro "Os provisórios", Editora Antares - Rio de Janeiro,
1990, e extraído do livro "Contos de escritoras brasileiras", Editora Martins
Fontes - São Paulo, 2003, organização e seleção de Lúcia Helena Vianna e Márcia
Lígia Guidin, pág. 121.
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