No Quarto da Valdirene
Fernando Sabino
Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa:
- Estava aflita para você chegar.
E sussurrou, apontando dramaticamente
para os lados da cozinha:
- Tem um homem no quarto da Valdirene.
Sacudiu a cabeça com irritação:
- Desde o primeiro dia eu achei que essa
menina não era boa coisa. Ela nunca me enganou.
Valdirene, a jovem empregada, uma mulata
de olhos grandes, não faria feio num palco.
- Como e que você sabe? - perguntou ele,
para ganhar tempo. Não partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a
Valdirene era ótima.
- Sei porque vi. Escutei um ruído
qualquer ai fora no corredor, olhei pelo olho mágico, e vi quando ela punha ele para
dentro pela porta de serviço.
- Ele quem?
- O homem. Não sei quem é, só sei que
é um homem. Deve ser o namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois
estão trancados lá no quarto faz um tempão.
- Vai ver que já saiu.
- Não saiu não, que eu não sou boba,
fiquei de olho. Esta lá dentro com ela até agora.
- E o que e que você quer que eu faça?
- Quero que bote ele pra fora, essa e
boa.
- Por quê?
Ela botou as mãos na cintura:
- Por quê? Você ainda pergunta por que?
Então tem cabimento a gente deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e
que essa menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá, eu
mesma vou.
- Espera ai, vamos com calma, mulher.
Você tem razão, mas deixa a gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça.
Pode ser perigoso. Como é que ele é?
- Não cheguei a ver direito. Só vi que
era um homem. Para mim, basta.
- Não posso ir lá no quarto dela sem
mais nem menos. Quem sabe é algum parente? Um irmão, talvez...
- Um irmão, talvez... Você tem cada
uma! Pior ainda: que é que um irmão tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã
como eles dois estão? Você tem de pôr esse homem pra fora.
- E se estiver armado? Ele pode muito bem
estar armado.
- Já que você está com medo...
- Não estou com medo. Só que temos de
agir com calma. Vamos ver como a gente sai dessa. Deixa comigo.
Ele respirou fundo e se meteu pela
cozinha, ganhou a área de serviço, ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no
quarto da Valdirene. Bateu de leve na porta:
- Valdirene.
Via-se pelas frestas da veneziana na
própria porta que o quarto continuava no escuro. Ele bateu de novo:
- Valdirene, está me ouvindo? Valdirene!
Escutou alguém se mexendo lá dentro e a
voz estremunhada da moça:
- Senhor?
- Tem alguém com você ai dentro,
Valdirene?
- Tem não senhor.
- Abra um instante, por favor.
Em pouco ela abria a porta, furtivamente,
e o encarava sem piscar. Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz
mortiça vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra.
- Acenda essa luz, minha filha.
Mais para vê-la melhor do que para olhar
o quarto, pois mesmo no escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém.
Luz acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava uma olhada
rápida por cima do seu ombro:
- Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa
noite.
Voltou para a sala, onde a mulher o
aguardava, tensa de expectativa. - E então?
- Não tem ninguém.
- Como não tem ninguém? Pois se eu vi o
homem entrando!
- Se viu entrando, não viu saindo. O
certo é que não tem ninguém no quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir.
- Como é que eu posso ir dormir sabendo
que tem um estranho dentro de casa? Você vai voltar lá e olhar direito.
- Eu olhei direito. Se não acredita, vai
lá e olha você.
- Quem e o homem nesta casa? Se você
não for olhar eu não fico aqui dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia.
Ele ergueu os braços e os deixou cair,
com um suspiro resignado:
- Essa mulher, meu Deus. Agora é você
que está com medo. Direto à polícia. Como se fosse um crime... Tudo bem, eu vou lá
olhar direito.
Voltou a bater na porta da empregada:
- Valdirene.
Desta vez ela respondeu logo:
- Senhor?
- Abra ai um instante, por favor.
- Sim senhor.
Ela abriu e foi logo acendendo a luz.
Estimulado pela nova oportunidade de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e
entrou no quarto. Sempre de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro
só cabia a cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia se
esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito, voltou-se para a moça
que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara modestamente os dela:
- Desculpe, minha filha. É que minha
mulher, você sabe, quando ela cisma uma coisa... Mas pode dormir sossegada. Boa noite.
Na sala, a mulher voltou a questioná-lo:
- Você olhou direito desta vez?
- Não há como olhar errado. Um quarto
deste tamaninho! Olhei o que tinha para olhar: a Valdirene e a cama.
- A Valdirene e a cama? O que você quer
dizer com isso?
- Não quero dizer coisa nenhuma. É que
ali dentro não cabe mais nada além da Valdirene e da cama.
- Não é isso que parece estar
insinuando, com essa sua cara.
- Que é que tem minha cara? Você é que
insinuou que tinha um homem lá dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece
que não tem. Só faltou olhar debaixo da cama.
- Não admiraria nada - ela o imitou, com
um trejeito. E ordenou, braço estendido:
- Pois então vai olhar debaixo da cama.
- Essa não! - relutou ele: - Já disse
que não cabe ninguém...
Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo
importunada:
- Me desculpe, Valdirene, mas é preciso
que você abra aí outra vez. '
Ela acendeu a luz, abriu a porta e
deu-lhe passagem. Seus olhos o acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou
para olhar debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele baixou a
cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a sob o estrado. Seu nariz
esbarrou de cheio em algo branco e macio - era nada menos que o traseiro de um homem.
- Oi - assustou-se, recuando.
- Oi - fez o homem, como um eco,
encolhendo-se ainda mais.
Ele se ergueu. perturbado, limpou a
garganta, procurando dar firmeza à voz:
- O senhor tem um minuto pra sair deste
quarto.
Um último olhar para Valdirene, como a
dizer que sentia muito mas não podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a
mulher na sala:
- Tinha sim. Tinha um homem debaixo da
cama. Está satisfeita?
- Eu não disse? E o que é que você
fez?
- Mandei que ele se pusesse pra fora. É
o tempo de se vestir.
- Meu Deus, ele estava nu?
- Que é que você queria? Não sei é
como ele pôde caber lá debaixo. Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha.
No dia seguinte, mal amanheceu, ela
despedia a Valdirene, coitadinha.
Texto extraído da revista "Playboy", edição de outubro/1983.
(Publicado no livro "O Gato Sou Eu", Editora Record - Rio de Janeiro,
1983, pág. 147).
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