O Golpe do Comendador
Fernando Sabino
Ele sabia que aquilo ainda ia acabar mal. Ele era noivo, à antiga: pedido oficial,
aliança no dedo, casamento marcado, Mas, no ardor da juventude, não se contentava em ter
uma noiva em Copacabana: tinha também uma namorada na cidade.
Encontravam-se na hora do almoço, ou em algum barzinho do centro, ao cair da tarde,
encerrado o expediente. Ele trabalhava num banco, ela num escritório. A noiva não
trabalhava: vivia em casa no bem-bom.
E tudo ia muito bem, até que a namorada, que morava na Tijuca, resolve se mudar também
para Copacabana.
A princípio ele achou prudente não voltarem juntos, já que uma não sabia da
existência da outra. Com o correr do tempo, porém, foi relaxando o que lhe parecia um
excesso de precauções. Mais de uma vez eu adverti ao meu amigo:
Cuidado. Um dia a casa cai.
Seria o auge da coincidência protestava ele.
Pois acabou acontecendo. Foi numa tarde em que os dois voltavam de ônibus para
Copacabana, muito enleados, mãozinhas dadas. Ali pela altura do Flamengo, ao olhar
casualmente pela janela, ele viu e reconheceu de longe a moça que fazia sinal no ponto de
parada.
Em pânico, o seu primeiro impulso foi o de gritar para o motorista que não parasse, para
evitar o encontro fatal. Era o cúmulo do azar: havia um lugar vago justamente a seu lado,
naquele último banco, que comportava cinco passageiros.
O ônibus parou e ela subiu. Ele se encolheu, separando-se da outra, mãos enfiadas entre
os joelhos e olhando para o lado como se adiantasse: já tinha sido visto. A noiva
sorriu, agradavelmente surpreendida:
Mas que coincidência!
E sentou-se a seu lado. Você ainda não viu nada pensou ele, sentindo-se perdido,
ali entre as duas. Queria sumir, evaporar-se no ar. Num gesto meio vago, que se dirigia
tanto a uma como a outra, fez a apresentação com voz sumida:
Esta é a minha noiva...
Muito prazer disseram ambas.
E começaram uma conversa meio disparatada por cima do seu cadáver:
Você o conhece há muito tempo? perguntou a noiva titular.
Algum - respondeu a outra, tomando-o pelo braço: Só que ainda não estamos
propriamente noivos, como ele disse...
Ah, não? Que interessante! Pois nós estamos, não é, meu bem? E a noiva o tomou
pelo outro braço:
Você não havia me falado a respeito da sua amiguinha...
Atordoado, nem tendo 0 ônibus chegado ainda ao Mourisco, ele perdeu completamente a
cabeça. Desvencilhou-se das duas e se precipitou para a porta, ordenando ao motorista:
Pare! Pare que eu preciso descer!
Saltou pela traseira mesmo, sem pagar, os demais passageiros o olhavam, espantados, o
trocador não teve tempo de protestar. Atirou-se num táxi que se deteve ante seus gestos
frenéticos, foi direto à minha casa:
Você tem que me ajudar a sair dessa.
Amigo é para essas coisas, mas não me dou por bom conselheiro em tais questões. Mal
consigo eu próprio sair das minhas: a emenda em geral é pior do que o soneto. Ainda
assim, tão logo ele me contou o que havia acontecido, ocorreu-me dizer que, se saída
houvesse, ele teria que abrir mão de uma com as duas é que não poderia ficar.
Qual delas preferia?
A minha noiva, é lógico - afirmou ele, sem muita convicção: É com ela que vou
me casar.
E torcia as mãos, nervoso:
Pretendia, né? Imagino o que a esta hora já não devem ter dito uma para a outra.
O pior é que minha noiva é meio esquentada, para acabar no tapa não custa.
Respirou fundo, mudando o tom:
Também, que diabo tinha ela de tomar exatamente aquele ônibus? E o que é que
estava fazendo àquela hora no Flamengo? De onde é que ela vinha?
Eu que sei? e comecei a rir: Me desculpe, meu velho, mas essa não
pega.
Ele se deixou cair na poltrona.
É isso mesmo. Não pega. Nenhuma pega. Estou liquidado. Não tem saída.
Só vejo uma e fiz uma pausa, para dar mais ênfase: O golpe do
comendador.
Marido exemplar, pai extremoso, avô dedicado, como se usava antigamente, o ilustre
comendador era de uma respeitabilidade sem jaça. Vai um dia sua digníssima consorte,
chegando inesperadamente em casa, dá com o ilustre na cama da empregada. Com a empregada.
Enquanto a esposa ultrajada se entregava a uma crise de nervos lá na sala, o comendador
se recompunha no local do crime, vestindo meticulosamente a roupa, inclusive colete,
paletó e gravata. Em seguida se dirigiu a ela nos seguintes termos:
Reconheço que procedi como um crápula, um canalha, um miserável. Cedi aos
sentidos, conspurcando o próprio lar.
Você tem o direito de renegar-me para sempre, e mesmo de me expor à execração
pública. E provocar em conseqüência a desgraça de nosso casamento, a desonra de meu
nome e o opróbrio de nossos filhos e netos. A menos que resolva me perdoar, e neste caso
não se fala mais nisto. Perdoa ou não?
Aturdida com tão eloqüente falatório, a mulher parou de chorar e ficou a olhá-lo,
apalermada.
Vamos, responda! insistiu ele com firmeza: Sim ou não?
Sim balbuciou ela, timidamente.
Ele cofiou os bigodes e, do alto de sua reassumida dignidade, declarou categórico:
Pois então não se fala mais nisto.
Tão logo ouviu o caso do comendador, o noivo desastrado resolveu imitá-lo. De minha casa
mesmo telefonou para a noiva, dizendo-lhe atropeladamente que ele era um crápula, um
canalha em resumo: o ser mais ordinário que jamais existiu na face da terra.
Depois, sem lhe dar tempo de retrucar, despejou-lhe uma cachoeira de declarações
amorosas, invocando o casamento marcado, a felicidade de ambos para sempre perdida, os
filhos que não mais teriam... Não faltaram nem reminiscências dos primeiros dias de
namoro - tanto tempo já que se amavam, ela não tinha treze anos quando se conheceram, as
trancinhas que usava, lembra-se? Tudo isso ia por água abaixo a menos que o
perdoasse.
Desligou o telefone, vitorioso.
Concordou em se encontrar comigo.
Não se esqueça. O comendador.
Já sei. Não se fala mais nisto.
E se foi, alvoroçado. Nem comigo se falou mais nisto, mas de alguma forma deu certo, pois
acabou se casando, teve vários filhos e, segundo ouvi dizer, vive feliz até hoje.
Com a outra.
STexto extraído do livro Fernando Sabino Obra Reunida, Volume
III, Editora Nova Aguilar S.A. Rio de Janeiro, 1996, pág. 148.
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"Biografias".
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