Como Dizia Meu Pai
Fernando Sabino
JÁ SE TORNOU HÁBITO MEU, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma
introdução:
Como dizia meu pai...
Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial
de dar ênfase a alguma opinião.
De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso
pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso
significará talvez Deus queira insensivelmente vou me tornando com o correr
dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança
espiritual que dele recebi.
Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes
circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao
formular uma idéia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um
princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua
presença dentro de mim.
No fim tudo dá certo...
Ainda ontem eu tranqüilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia
literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso:
Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim.
Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a subir
pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da tarde, egresso
do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com minha mãe no sofá de
palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do dia. Os filhos guardavam zelosa
distância, até que ela ia aos seus afazeres e ele se punha à disposição de cada um,
para ouvir nossos problemas e ajudar a resolvê-los. Finda a última audiência, passava a
mão no chapéu e na bengala e saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo.
Regressava religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia
sempre de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de
balas que o paizinho nunca deixava de trazer.
Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma bóia de descarga, a
bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da necessária habilidade
e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém mais podia tocar. Aprendi com ele
como é indispensável, para a boa ordem da casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma
chave de fenda. Durante algum tempo andou às voltas com o velho relógio de parede que
fora de seu pai, hoje me pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois
de remexer durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao
remontá-lo houvesse sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O relógio
passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas desencontradas. Como, aliás,
acontece até hoje.
Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz
de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum
aborrecimento.
As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem.
Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se
poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não
poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloqüente em suas
conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as
esperanças vãs:
O que não tem solução, solucionado está.
E tudo que acontece é bom talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar
isso, como seu filho Gerson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para
melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo
fazer nada para isso, espere, que mudará por si.
Às vezes seus princípios pareciam confundir-se com os da própria sabedoria mineira:
esperar pela cor da fumaça, não dar passo maior do que as pernas, dormir no chão para
não cair da cama. Os dele eram mais singelos:
Mais vale um apertinho agora que um apertão o resto da vida.
Negócio demorado acaba não saindo.
Dinheiro bom em coisa boa.
Antes de entrar, veja por onde vai sair.
Um dia me disse, ao me surpreender tentando armar um brinquedo qualquer com mãos
desajeitadas:
Meu filho, tudo que é bem feito se faz com os dedos, não com as mãos.
Tenho tido ocasião ao longo da vida de observar como é procedente este seu ensinamento.
A mão é grossa, pesada, insensível. Se não fossem os dedos de nada serviria, a não
ser para dar bofetadas. Os dedos são refinados, sensitivos, e a eles devemos tudo o que
é bem feito e acabado: do mais requintado trabalho manual às mais complicadas
operações, da mais fina sensação do tacto à mais terna das carícias.
Se o cafezinho foi bom, melhor não aceitar o segundo: será sempre pior que o
primeiro.
Como tudo mais nessa vida: uma viagem, uma mulher: não repetir, pois a emoção jamais
será a mesma da primeira vez. E não desanimar, pois se nascemos nus e estamos vestidos,
já estamos no lucro. Nada neste mundo é cem por cento perfeito. Se contamos com mais de
cinqüenta por cento, também já estamos no lucro. Quando conseguimos o que é apenas
bom, naturalmente devemos continuar aspirando o melhor, se possível - mas perfeição
absoluta, só Deus. E creio que Seu Domingos, homem íntegro, reto e temente a Deus, hoje
em Sua companhia, não consideraria sacrilégio comentar, naquele seu jeito ladino:
E assim mesmo, olhe lá...
Seus conselhos eram de tamanha simplicidade que tinham a força de provérbios nascidos da
voz do povo: nada como um dia depois do outro, um lugar para cada coisa e cada coisa em
seu lugar, tudo tem seu tempo. Fosse ele influenciado por leituras piedosas, poderíamos
mesmo detectar, aqui e ali, vestígios de inspiração bíblica: tempo de semear, tempo de
colher...
É o que nos acontece.
Há uma diferença sutil entre admitir que as coisas são como são, não como deviam ser,
e reconhecer que é o que nos acontece. Aqui, o comentário não pretendia refletir a
impossibilidade de modelar (com os dedos) os fatos de acordo com a nossa vontade, mesmo
que esta esteja certa. Exprime antes a humilde aceitação da nossa precária condição
humana, como frágeis criaturas de Deus. Procura se solidarizar com a desgraça alheia,
como a dizer que também estamos sujeitos a ela, somos todos irmãos na mesma
atribulação. É o que nos acontece.
Portanto, alegremo-nos! Uma amiga minha, que não o conheceu, busca nele se inspirar
quando afirma, sempre que se vê diante de algum contratempo:
Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar o meu bom humor.
Acabei levando esta disposição de minha amiga às últimas conseqüências: o mais
importante é não perder a capacidade de rir de mim mesmo. Como Cartola e Carlos Cachaça
naquele samba, às vezes dou gargalhadas pensando no meu passado.. . E cada vez acredito
mais no ensinamento recebido não sei se de meu pai ou diretamente de Confúcio, segundo o
qual há várias maneiras de realizar um desejo, sendo uma delas renunciar a ele. Como
adverte outro sábio, se desejamos obstinadamente alguma coisa, é melhor tomar cuidado,
porque pode nos suceder a infelicidade de consegui-la.
Tudo isso que de uns tempos para cá vem me vem ocorrendo, às vezes inconscientemente,
como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias, quando eu ia caminhando
distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que propósito, uma frase ouvida
desde a infância e que fazia parte de sua filosofia: não se deve aumentar a aflição
dos aflitos. Esta máxima me conduziu a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no
filme que fiz sobre ele, a qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir
das pessoas mais do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão
absoluta que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor.
No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de sol, cheguei
a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la enviado:
Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do outro.
Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência adquirida
ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de representante de umas
firmas inglesas, era procurador de partes solene designação para uma atividade
que hoje talvez fosse referida como a de um despachante. A princípio os amigos,
conhecidos, e depois até desconhecidos passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou
receber dele uma orientação. Era de se ver a romaria no seu escritório todas as
manhãs: um funcionário que dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai
agoniado com problemas do filho era gente assim que vinha buscar com ele alívio
para a sua dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o
conhecia pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão
administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de ter saído
de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra sua que hoje tanta
falta me faz.
Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas más. No
momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom.
O texto acima foi publicado originalmente no livro "A Volta por Cima" e
extraído de "Fernando Sabino - Obra Reunida, Vol. III", Editora Nova
Aguilar - Rio de Janeiro, 1996, pág.611.
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