Mais um Natal
Fernando Sabino
Aviso num restaurante de Brighton, que o dono fez imprimir no cardápio, à revelia dos
garçons:
Somos seus amigos e lhe desejamos um Feliz
Natal. Por favor, não nos ofenda, dando-nos gorjetas."
Junto à porta de saída, entretanto, os
garçons fizeram dependurar uma caixinha sob o letreiro: "Ofensas.
E no dia de Natal, como sempre, todos os
bares de Londres permanecem fechados. Mas consegui realizar o milagre de encontrar em
Chelsea um bar aberto, lá para as dez horas da noite. Meio desconfiado, fui entrando
logo um dos fregueses se adiantou, copo de cerveja na mão:
Perdão, cavalheiro, mas o senhor já
foi à igreja hoje?
E se justificou estendendo o braço ao
redor, para apontar os demais fregueses, que bebiam cerveja em silêncio.
Porque aqui dentro, nós todos já
fomos.
E sem esperar resposta, passou-me o seu copo
de cerveja, pedindo ao barman outro para si.
Festejou-se o Natal, já se festeja o Ano
Novo. Há, porém, muita gente na triste perspectiva de passar ambas as festas em completa
solidão. Como é o caso de Ethel Denham, ma velhinha com mais de oitenta anos de idade.
Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca
chegou a se casar. Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria.
Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de
sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de
necessidade.
Na noite de Natal esta necessidade veio,
mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não agüentava a idéia de estar sozinha e
passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos.
Em pouco chegava um guarda de serviço, para
ver o que tinha acontecido. E viu que não tinha acontecido nada.
Fique um pouquinho pediu ela.
Vamos conversar um pouco.
O guarda teve pena e resolveu ficar. Para
não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá,
aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu ma arrumação na casa.
Para quê! Há gestos de solidariedade e
compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples
necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite
seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer.
Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em
pouco surgia outro guarda, para saber o que havia.
Fique um pouquinho pediu ela:
O senhor não aceita uma xícara de chá?
Mas este estava de serviço mesmo, não era
mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora.
Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar aquele sim, tão
bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um
capote, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim
de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante
da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha
apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um
dedinho de prosa, para uma xícara de chá.
Outros, cuja necessidade material é mais
imperiosa ainda que o convívio, tiveram quem apelasse em nome deles durante o Natal. O
vigário da minha paróquia, em West Hampstead, resolveu perder a cerimônia, durante a
prédica:
Vou ser claro e quem tiver ouvidos
para ouvir, ouça: estamos nas vésperas do Natal, é preciso ser generoso,
proporcionarmos aos pobres um fim de ano decente. Eles também têm direito. Quero hoje
uma coleta mais abundante que nos outros domingos. Falei claro? Pois vou lançar mão de
uma parábola, para não perder o hábito, e porque fica mais bonito. Já usei essa
parábola em outros Natais, e com grande sucesso. Lá vai ela, prestem atenção.
E pôs-se a contar a história daquele
inglês que estava passeando pelo campo, como só os ingleses costumam fazer, quando de
repente caiu uma chuvarada. Ele, naquele descampado, não tinha onde se esconder. Avistou
ao longe uma árvore solitária, correu para lá mas era uma árvore desgalhada e
desfolhada, quase que só tinha tronco. No tronco havia um oco o homem não teve
dúvida: meteu-se no oco da árvore, para se esconder da chuva.
Vai daí, no que a chuva amainou, o homem
quis sair do oco da árvore, não houve jeito: a água tinha feito inchar a madeira e a
passagem, já estreita, estreitara-se ainda mais. Ali estava ele, prisioneiro da árvore,
sozinho no meio do campo, jamais sairia dali, certamente morreria entalado. Então
começou a meditar na estupidez que fora sua vida, sempre preocupado com o próprio
bem-estar, sem jamais pensar em seus semelhantes. Nunca lhe ocorrera dar uma esmola para
os pobres no Natal, por exemplo. Se freqüentasse a igreja da sua paróquia (e aqui o
vigário fazia um parêntese: "que certamente podia ser esta aqui mesmo, ele podia
ser um dos senhores que estão me ouvindo"), ele seria sensível a este apelo à sua
generosidade. Mas não: gastava dinheiro à toa, com bobagem, nunca abrira mão de um
mínimo que fosse para atender à necessidade de alguém. E foi-se sentindo cada vez mais
ínfimo, diminuindo diante de si mesmo, com a consciência da sua própria iniqüidade.
Deu-se então o milagre: tanto diminuiu, ficou tão pequenino, que conseguiu sair do oco
da árvore.
E o vigário arremata:
Vamos ter uma estação bem chuvosa
este fim de ano! Cuidado com o oco da árvore em que se meterem! Lembrem-se da própria
pequenez! Dêem esmolas aos meus pobres!
Já o dono de uma área de estacionamento de
automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar
à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o
seguinte aviso ali afixado:
"Feliz Natal! Hoje o estacionamento
aqui é gratuito.
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Em tempo: a paz na terra aos homens de boa vontade termina impreterivelmente à
meia-noite."
Texto extraído de "Livro Aberto", Editora Record - Rio de Janeiro, 2001,
pág. 304.
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