Enquanto seu lobo não vem
Érico San Juan
Era uma fabulosa tarde domingueira. O rapaz saiu de casa, respirou, olhou-se no seu
espelho interno só para verificar como continuava sendo o máximo, pegou o carro e
foi-se.
Na fabulosa e formosa tarde domingada, o negócio era beber. O rapaz, porém, não queria
saber disso. Seu negócio era arrumar um disco de vinil do Edu Lobo, ídolo de seu pai,
cujo coração dava mostras de fraqueza, causada por fraquezas várias anteriores. O velho
não queria partir de coração partido, queria ouvir o disco que não ouvia há anos. Por
não mais tê-lo em mãos, pediu ao filho que o procurasse. E lá se foi o filho a
Sampa, terra em que se plantando tudo dá, buscar num sebo o tal disco para o pai
semi-moribundo.
O filho do pai desconfiava que o pai resistiria por um tempo finito, com ou sem Edu Lobo.
Mas demonstrava certa frieza de sentimentos, pois confiava que encontraria o raio do LP no
mesmo dia.
A fabulosa tarde domingueira deu os sinais de que decepcionaria as esperanças do moleque
no carro. Veio uma tempestade no meio do caminho. Nuvens pretas dominaram o céu, outrora
azul-anil nas entranhas do Brasil-zil. Difícil conduzir o carro numa rodovia molhada,
repleta de outros veículos, escura tal qual o sono de um pesadelo.
Centenas de quilômetros e pedágios depois, nada de mais grave ocorreu na viagem. Três
horas de viagem, o rapaz chegou a um longínquo sebo de vinis em São Paulo. Era fim de
expediente, o dono da loja resmungou em ter que atender a um retardatário, por fim
deixou-o procurar o que desejava. Uma fortuna, o Edu Lobo. O filho do lobomaníaco pagou.
E voou para casa.
O pai aguardava o rebento no leito de morte, fraco mas animado ao constatar que o filho
cumprira seu desejo.
Os olhos do velho brilhavam como nunca. E, num gesto surpreendente, catou o disco do Lobo,
rasgou a capa, sacou do vinil e o quebrou em dezenas de pedacinhos. Ao filho, perplexo com
a cena, o quase-morto sentenciou:
Essa é minha lição e meu legado, carregue-o para toda a vida, meu filho. Eu
adorava a música desse cara, mas vejo que isso não me serve em nada numa hora destas.
Jamais se apegue em excesso às coisas desta vida!
Feito o discurso, o pai do rapaz fechou os olhos e embarcou num sono sem fim. O rapaz
propriamente dito não sabia se ficava triste com o passamento do velho ou se se contorcia
de raiva com o gesto derradeiro do distinto progenitor...
Érico San Juan (1976) é cartunista profissional desde 1991. Publica no Jornal
de Piracicaba, no caderno Fim de Semana, a tira de quadrinhos "Um pamonha de
Piracicaba". Participou como artista selecionado do Salão Internacional de Humor de
Piracicaba (2004 a 2006) e Paraguaçu Paulista (2005 a 2007), e jurado de seleção no
Salão Universitário de Humor da Unimep (2006). Mantém um blog autoral de humor
multimídia (http://ericosanjuan.blogspot.com),
com charges, ilustrações e desenhos animados. No site MySpace (www.myspace.com/ericosanjuan), mantém
uma página com canções de humor, de autoria e interpretação próprias. Atualmente,
ministra oficinas de caricatura, criatividade infantil e humor gráfico em geral.
O texto acima foi enviado ao
Releituras pelo autor.
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