Nem com uma flor
Affonso Romano de
Sant'Anna
"Até hoje só bati numa mulher,
mas com singular delicadeza"
Vinicius de Moraes
Um amigo ia passando pela Avenida Atlântica quando viu um homem batendo numa mulher
dentro de um carro estacionado. Resolveu parar e chamar a polícia. Mas iam passando pelo
calçadão dois garotões atléticos que vendo o tumulto pararam também para saber. Meu
amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na mulher.
Mas a mulher não é dele? - indagou o garotão.
E só porque é dele pode bater? - diz o amigo.
É, nessa você me pegou, cara.
Nesta semana a OAB descobriu que em Imperatriz, no Maranhão, nos últimos cinco anos,
maridos mataram 30 mulheres. Mas o fizeram por uma razão muito clara: não queriam pagar
pensão nem partilhar os bens na separação. Diante desta estatística da terra de
Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados, porque eles só matam mulher por
"traição", e, mesmo assim, em menor escala.
Mas vou lhes contar outra estória: uma amiga estava em São Paulo numa conversa sobre
espancamento de mulheres. De repente, falou-se de um conhecido professor que havia
espancado a mulher (coisa, aliás, que acontece em várias faculdades do país). Reparem
bem, estamos falando de gente fina. Não se trata de cachaceiros na subida do morro, do
sujeito massacrado pela vida que chega em casa escorraçando as crianças, cães e
mulheres. Estamos falando de gente inteligente, formada, com anel no dedo, que toma
coquetéis com a gente e cita Marx, Hegel et caterva. Vai daí, alguém, comentando a
razão por que o professor teria batido na mulher, sendo ele uma pessoa célebre, indaga:
- Mas, afinal, ele é ele, e ela quem é?
Na primeira estorinha vocês viram que um acha que a mulher é propriedade privada do
marido, e por isto pode apanhar. Quer dizer: é igual quando a gente tem um cavalo ou
cão. Já na segunda narrativa, a titulação acadêmica ou a importância hierárquica
justifica a violência sobre o mais fraco. E a mulher, do ponto de vista muscular, é
geralmente mais fraca que o homem. Por isto faz muito sentido quando na favela ao lado
ouço as mulheres que apanham gritar: "Covarde! Vai bater num homem". E um
garotão esclarecido, que estuda lutas marciais, ao ouvir a estória do professor
espancador, observou: "Eu queria ver esse professor crescer para cima de mim".
As estorinhas como essas são intermináveis. Lá vai outra. Uma amiga estava dando uma
entrevista à televisão e o assunto era exatamente o espancamento de mulheres e a
necessidade de se criar uma delegacia especial no Rio, como Franco Montoro criou em São
Paulo, só para atender mulheres. E lá ia explicando o bê-á-bá da violência dos
homens sobre as mulheres, lembrando que, quando uma mulher é violentada ou espancada, nas
delegacias comuns têm que passar por vexames e cantadas, que os homens vêem a vítima
como culpada, porque nossa sociedade nos convenceu de que a mulher é sempre uma Eva
pecadora. Lembrava que em alguns países, além das delegacias para mulheres, há
associações estruturadas para esconderem as vítimas, porque sabem que se muitas delas
voltarem para casa serão até assassinadas. E foi explicando que em alguns lugares dos
Estados Unidos existe um tratamento para maridos violentos, em sessões comuns, uma
espécie de Associação de Alcoólatras Anônimos (os Espancadores Anônimos), que se
curam e se tratam em grupo, porque isto é uma doença pessoal e social.
Mas enquanto minha amiga dava a entrevista, os câmeras estavam indóceis. Parecia que o
assunto era com eles. E aí, não agüentaram, interromperam a entrevista e um disse:
a gente trabalha na rua o dia inteiro, chega em casa cansado e a comida não está
pronta, o que é que há? Ela está querendo apanhar! E a amiga tentou explicar:
então é só você que trabalhou? Ela não batalhou por aí em dupla jornada? Imagine se
toda mulher fosse bater em marido que traz pouco ou nenhum dinheiro para casa?
Os câmeras continuaram resmungando durante a entrevista. Não sei o que aconteceu quando
eles chegaram em casa. Mas se houvesse na cidade uma delegacia para defender o direito das
mulheres certamente pensariam duas vezes. Talvez não chegassem em casa sobraçando
flores. Mas seguramente chegariam menos arrogantes.
(27.10.85)
Texto extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro,
1986, pág. 54.
Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".
|