O cágado
Almada Negreiros
Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas
estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não
vir a propósito um cágado.
O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora
estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade,
o tal cágado da zoologia.
O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para
contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era
capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente.
Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que
aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. 0uando chegou perto do tal sítio,
o cágado, que já tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não
quer a coisa.
O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de
muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto
é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao
cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as
cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e
nada.
Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver
assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais
lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exatamente como uma vara
perdida.
Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato submetida a nova orientação.
Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde
dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o
inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem
dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que
a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade
pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.
E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si o
homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos
eu, que sou muito senhor da minha vontade.
O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do
cágado ao almoço. A pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para
as horas de almoçar.
Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não;
agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está
em prova, esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas!
Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e
pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a segunda, a terceira, e era uma
maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença
do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que
enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais, via-se
perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente
impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era
indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador
rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava por
ali por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por
outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um
dever importante, uma questão de vida ou de morte a vontade.
Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial,
foi completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a
humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.
A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi
surpreendido por dolorosa dúvida já não tinha nem a certeza se era a
qüinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais valia
perder uma pazada.
Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia
crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua
vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De fato, se
aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade não podia
resultar superlativamente dura e preciosa.
Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem
constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento.
Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se quer
pedir, eram desnecessários todos os raciocínios e outros arabescos cerebrais, não havia
outra necessidade além da dos próprios músculos.
Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de
areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia ser a
altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem incitamento nem
estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a
decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio na pá do
trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração desta perseverança.
Inclusive, a própria descoberta do centro da Terra, que tão bem podia servir de regozijo
ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao
homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efetivamente
interminável. Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim
se explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos
corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.
Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade,
tendo começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto carregado,
não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas as noites.
Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de
fato, mais continuação daquele buraco, parava exatamente ali, sem apoteose, sem
comemoração, sem vitória, exatamente como um simples buraco de estrada onde se vê o
fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada.
Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas
decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado
de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono,
lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! 0
cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e
foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de
que ele já se tinha esquecido há muito - a luz do sol. A primeira sensação foi de
alegria, mas durou apenas três segundos, a segunda foi de assombro: teria na verdade
furado a Terra de lado a lado?
Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país
estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções
diferentes das que ele tinha na memória. 0 sol também não era o mesmo, não era
amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a sensação mais
estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em
pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a
única maneira de poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas para o ar...
Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e
o corpo a fazer o pino, porque de pé subia-lhe o sangue à cabeça. Então, começou a
ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a boca,
falava-se com o nariz.
Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir.
Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio quem o abrira com uma pá
de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou;
subiu, subiu, subiu...
Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente
o maior monte da Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pazadas de terra, uma
por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.
Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que
dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava
por cima disto tudo e de muito mais.
O homem que era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes
o diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era
necessário tirar aquele monte maior da Europa, de cima da cidade, onde estava a casa da
sua família. Então, foi buscar outra pá dos trabalhadores rurais e começou logo a
desfazer o monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas
com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres,
os telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita gente
suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como
dantes.
O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas
quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas, algumas
dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era a
última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira que ele tinha
tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar;
curioso, quis ver porque era era o cágado.
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970) nasceu em São Tomé e
Príncipe, Portugal. Em 1905 já redigia e ilustrava jornais manuscritos (A
República e O Mundo). Publica seu primeiro desenho em A
Sátira e faz sua primeira exposição individual de 90 desenhos, em 1913. Escreve,
em 1915, o Manifesto Anti-Dantas e por extenso e é publicado o primeiro
número da revista Orpheu. Retorna de sua estada em Paris, em 1920. No ano de
1925 pinta dois painéis para A Brasileira, um café do Chiado, em Lisboa. De
1927 a 1932 mora em Madrid. Em 1938, conclui os vitrais da Igreja de Nª Sra. de Fátima.
Pinta o famoso retrato de Fernando Pessoa (Lendo Orpheu), para o restaurante
Irmãos Unidos, em 1954. Em 1951, o SNI lhe confere o Prêmio Nacional
das Artes. Em 1966 é eleito membro honorário da Academia Nacional de Belas Artes.
No ano seguinte recebe o Grande Oficialato da Ordem de Santiago Espada. No ano de 1970, o
pintor e escritor morre em Lisboa, no mesmo quarto em que morrera o poeta Fernando Pessoa.
Companheiro de geração de Pessoa, é considerado um dos maiores pintores lusos, além de
escritor e agitador cultural. Sua importância na cultura portuguesa é sentida mesmo
após sua morte. Deixou contos espalhados por revistas de vanguarda de curta duração.
Obras:
O Moinho (1912 teatro)
Manifesto Anti-Dantas e por extenso (1915)
A Engomadeira (1917 novela)
A Cena do Ódio
(poema publicado na revista Portugal Futurista em 1917)
A Invenção do Dia Claro (1921)
Os Outros (1923 teatro)
El uno, trajedia de la unidad (1927 teatro)
S. O. S. (1929 teatro)
Nome de Guerra (romance, 1938)
Antes de Começar (teatro)
Deseja-se Mulher (1959 teatro)
Texto extraído do livro Os cem melhores contos de humor da literatura
universal, Ediouro Rio de Janeiro, 2001, pág. 425, organizado por Flávio
Moreira da Costa.
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