Quintais
Adriana Lisboa
Na casa do meu avô, havia quatro quintais.
No principal, o portão se abria para a rua, e ali ficava a casa propriamente dita, e por
cima do muro baixo a gente via as cabeças das pessoas que passavam pela rua, sempre tão
devagar. Às vezes vinha dar na varanda o cheiro do rio, um cheiro de pano e de barro. Na
garagem descoberta, sobre os cascalhos, dormia a Variant marrom do meu avô.
À esquerda, separado por um muro com uma passagem, ficava o universo dos abacateiros e o
quartinho que o meu avô chamava de Petit Trianon. Nós apanhávamos abacates para fazer
boizinhos com palitos de fósforo. O Petit Trianon eu não me lembro para que servia,
ficava quase sempre fechado. Mas eu tinha pesadelos com ele.
À esquerda, separado por outro muro com outra passagem, ficava um universo híbrido em
que cabiam orquídeas numa estufa, galinhas, goiabeiras e um pé de romã quase esquecido,
lá no fundo, longe de tudo. Era o quintal mais colorido. Uma vez minha irmã caiu de uma
goiabeira, a barriga enterrou numa torneira e ela foi parar no hospital.
À direita do quintal principal, ficava o último, e quase proibido. Havia o muro, mas na
passagem tinha um portãozinho baixo de madeira, que às vezes a gente pulava por prazer.
Lá só havia mato. Árvores altas, sombras, coisas indizíveis se arrastando junto às
raízes, barulhos de insetos que nunca existiram de se ver. Lá fazia calor e férias,
invariavelmente, mas também podia cair chuva, e a chuva ficava guardada para os nossos
pés no tapete de folhas velhas, de frutos podres, de vermes lentos e moles.
Os quatro quintais da casa do meu avô arrumaram-se numa bússola, e quando eu pisei pela
primeira vez numa caravela fervilhando de adultos, vinha com ela no bolso. Se não como
guia, ao menos como amuleto.
Adriana Lisboa é carioca, nascida em 1970. No Rio de Janeiro passou sua
infância e juventude, entre a cidade e a fazenda da família no interior do estado, tendo
morado por uns tempos em Brasília, Paris e Avignon. Vive hoje entre o Rio e a cidade de
Boulder, Colorado, nos Estados Unidos. Estudou Música foi flautista, cantora e
professora. Há algum tempo se dedica exclusivamente à literatura é pós-graduada
em Letras sendo hoje considerada por muitos como uma revelação no campo da
escrita, tendo já publicado os romances Os Fios da Memória (1999) e Sinfonia em Branco
(2001) e "Caligrafias" (2004), todos pela Editora Rocco. Realiza, também,
traduções de textos estrangeiros. Adriana foi agraciada com o Prêmio
Literário José Saramago com seu "Sinfonia em branco", em 2003.
O texto acima foi extraído do livro 25 mulheres que estão fazendo a nova
literatura brasileira, Editora Record 2004, pág. 225, organização de
Luiz Ruffato.
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